Memórias de Prédios
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O Incêndio

28 de setembro de 2018. Às vinte para as três da madrugada, Márcio Keller acordou em sua residência com um toque do interfone. Era o porteiro Claudio do Nascimento: “Márcio, tá pegando fogo no apartamento da dona Julieta!”. Do jeito que sempre dorme, apenas de calção, o zelador tirou da gaveta uma cópia da chave e atravessou a passarela que liga os terraços dos blocos. Apesar de horas antes ter sofrido uma distensão na virilha, numa partida de futebol com amigos no Colégio Bom Conselho, Márcio desceu 180 degraus como se as escadarias fossem uma ladeira em espiral.

Márcio abriu a porta, deu três passos dentro e voltou para respirar. O apartamento estava tomado de fumaça e fuligem preta, como num forno de carvão. Não enxergava nada, mas o zelador, que conhecia o imóvel, mentalizou a planta baixa e entrou gritando:

“DONA JULIETA, SEU APARTAMENTO TÁ PEGANDO FOGO! VEM! VEM!”

Então, dois pontos dourados brilharam no meio da fumaça. A cabeceira de metal da cama iluminou o caminho de Márcio que ouviu Julieta tossir e dizer algo como “mas eu tô pelada”.

 

“NÃO INTERESSA COMO A SENHORA TÁ, VEM!”

Márcio agarrou a moradora e carregou-a para fora do apartamento em chamas.

Minutos depois de salvar Maria Julieta Rinaldi, a única habitante do B-12, Márcio posicionou um extintor de incêndio, espichou a mangueira de emergência e ficou sentado, no canto da escada, esperando a guarnição dos bombeiros chegar para abrir o registro do hidrante. “Até briguei com o bombeiro”, lembra o zelador, dois anos depois do incidente.

“Ô MEU, DESCE! TU TÁ ATRAPALHANDO!”

Ao ver Márcio parado na escada, o bombeiro gritou com ele: “Ô meu, desce, desce, desce, que tu tá atrapalhando!”. Márcio ficou possuído e retrucou: “Quê que eu tô atrapalhando… se eu que tirei a mulher aí de dentro! Já espichei o negócio aqui pra vocês”, “NÃO, eu sou o bombeiro, eu fiz treinamento para isso. Eu vou entrar”. Márcio respondeu na lata: “Então tu entra!”.

Márcio tem certificado de socorrista pelo Corpo de Bombeiros, mas aquela situação era bem diferente das vividas durante a formação que fez, lá embaixo, na Avenida Silva Só: o zelador entrou sem qualquer equipamento de segurança, nem um pano ele tinha para tapar o nariz. “Aí o bombeiro deu dois passos e voltou: “P2, P2, P2, oxigênio!!”, recorda Márcio, que não ficou quieto e ainda caçoou do fôlego do agente: “E aí, bombeirinho? Tu não aguentou? Eu fui lá dentro e aguentei, que treinamento é esse que tu fez?!”.

Há menos de dois meses de seu quinquagésimo aniversário, até aquela madrugada, nunca precisou entrar em qualquer residência para atender uma emergência em vinte anos de zeladoria. Se estivesse apenas de cueca, teria entrado igual.

“P2, P2, P2… OXIGÊNIO!!!”

Ouça abaixo o relato que o zelador Márcio Keller deu sobre o incêndio:

No bloco da frente, Isaura Duarte Torres, de 72 anos, casualmente estava acordada. Ela deixava tudo pronto para o almoço que daria para sua neta que estava de aniversário no dia seguinte. De repente, ela ouviu barulhos e uma gritaria. Foi na janela da lavanderia, olhou pra cima e teve a visão do horror: da janela do apartamento de Julieta se via chamas que subiam por pelo menos três andares acima.

Quando Isaura desceu no hall do edifício, viu que vários moradores desciam com os cachorros e gatos de estimação e lembrou do seu. Subiu correndo para o daschund adulto que vive com ela há cerca de 10 anos. Desceu do jeito que estava: de chinelo, pijamas, moletom e casaco.

“Eu quero subir de novo, por que eu quero pegar os meus dinheiros”

 

A professora aposentada lembrou ainda que foi “a noite do pijama na Independência”, porque ficaram até umas cinco horas da manhã na calçada, até que os bombeiros determinasse que era seguro voltar para os apartamentos. Isaura recorda ainda um diálogo cômico que ouviu naquela noite: “Eu quero subir de novo, por que eu quero pegar os meus dinheiros”, insistia uma moradora que estava incansinada com a situação. “Não, não! Tu não vai subir! Ninguém pode subir”, respondia uma parente da mulher.

 

Ouça abaixo o relato da moradora Isaura Duarte Torres sobre o incêndio:

No bloco de trás, Elisabete Hoffmann, professora de Educação Infantil, 63 anos, acordou ao ouvir um barulho e alguém gritando, mas não conseguia decifrar o que a pessoa dizia. O seu marido Gilberto Machado levantou e disse “Calma… mas eu acho que tem fogo”. Elisabete foi na janela da área de serviço, e assistiu o horror: labaredas de fogo saindo da janela do andar de baixo.

“Pega a bolsa, pega teus documentos”, Elisabete ouvia dos vizinhos de porta, que já estavam abandonando o apartamento, que foi uma das principais unidades atingidas pelo fogo. Correu para acordar sua filha Juliana, 24 anos: “levanta, coloca qualquer roupa, pega a tua bolsa, teus documentos e vamos descer que tem incêndio no prédio!”. Ao descerem, a fumaça era tanta que não enxergava um palmo em frente ao rosto.

“Calma… mas eu acho que tem fogo”

“Moço, pelo amor de Deus, minha mãe tem 94 anos e mora no último andar…”

E então Elisabete lembrou da mãe: idosa, cadeirante e que mora no 14º andar com uma cuidadora. Pensou em avisar a irmã que estava de visita, para talvez tirá-la pela passarela do terraço. O seu celular, no entanto, não ligava. O sistema operacional estava agendado para atualizar naquela madrugada.

Elisabete falou com um dos bombeiros: “Moço, pelo amor de Deus, minha mãe tem 94 anos e mora no último andar…”, “A Senhora desceu e deixou a sua mãe lá?”, brincou o bombeiro. “Não, não, eu não moro com ela, eu moro no oito”. O bombeiro a tranquilizou, dizendo que o incêndio já estava praticamente controlado.

 

Ouça abaixo o relato da moradora Elisabete Hoffmann Machado sobre o incêndio:

“Isso é um horror, essa pessoa não tem condição de morar aqui”

“Ela botou fogo no apartamento!”

Ainda naquela madrugada, na calçada com os outros moradores, uma moça, filha de um condômino, tentava convencer cada um dos que estavam ali acordados a processar a proprietária do apartamento que pegou fogo. O condomínio todo sabia que Julieta era fumante. “Isso é um horror, essa pessoa não tem condição de morar aqui”, vociferava a jovem. “Ela botou fogo no apartamento!”.

Sentada numa mureta que fica bem em frente ao edifício, Isaura não estava gostando do que ouvia e disse a sua vizinha, também idosa, que estava sentada ao seu lado: “Ai, mas que coisa horrível, né! Que pessoa sem caridade. Como é que ela já está afirmando, se nem os bombeiros vieram dizer o que que foi”. Então, olhou para a mulher, bem mais nova que ela, e perguntou: “Tu moras aqui?”, e a moça respondeu, “não, minha mãe que mora”. Pensou: “bom, ela não tem nem direito de dizer isso”.

A moça então começou a passar com uma espécie de abaixo assinado, pedindo para as pessoas assinarem, pois aquilo, segundo ela, era uma barbaridade. Isaura se levantou e deu um sermão na jovem:

 

Olha aqui, você está se dando conta do que estás fazendo? Tu estás julgando uma pessoa que tu não sabe nem o que aconteceu no apartamento dela…

 

Mas a minha mãe estava em risco…

 

Escuta aqui, tu não moras aqui e a tua mãe correu tanto risco como qualquer um de nós, que somos idosos e até os não-idosos também. Isso acontece em qualquer prédio. Você deveria ter mais respeito com as pessoas!

Ouça abaixo o testemunho de Isaura Duarte Torres sobre o conflito gerado pelo incêndio.

A jovem deu as costas e saiu. Isaura não a viu mais naquela madrugada. Algumas semanas depois os bombeiros concluíram que o fogo havia começado com o curto circuito de um ventilador que tinha ficado ligado.

 

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